Diário de Berlim Ocupada: uma viagem à insanidade da guerra

Em algum lugar da Berlim devastada pelos intensos bombardeios aliados e já dominada pelas bandeiras da União Soviética, no fim da Segunda Guerra, um grupo de amigos deixou o porão em que se escondia e saiu às ruas para buscar comida, controlando o pânico dos vôos rasantes. Era o fim da tarde de uma segunda-feira. Ao entrarem em uma rua, foram surpreendidos por uma cena surrealista: à frente deles, não se sabe vindo de onde, estava um boi branco, com olhar pacífico e grandes chifres. Um dos amigos segurou o chifre do animal, que acabara de tropeçar na cratera de uma bomba, mas ouviu o alerta do grupo: “Temos de perguntar aos russos”. Um dos soldados se aproximou, olhou o animal e deu a autorização:

– Fiquem com ele antes que alguém fique – e um integrante do pelotão vai junto para dar o golpe no boi que garantiria um caro estoque de carne.

Tão logo animal foi morto e o grupo de amigos, manejando facas de cozinha, começou o trabalho, outro episódio chamou a atenção. Subitamente, uma multidão deixou os buracos em que vivia e avançou em direção àquela garantia repentina de comida. Uns brigavam pelo fígado, outro se agarrava à língua até conseguir soltá-la, uma mulher corria agitando o rabo do boi. Neste momento, abalada, Ruth Andreas-Friedrich se afastou deprimida.

“Então, é isso que significa a hora da libertação?”, pergunta em uma das páginas de seu comovente e impactante Diário de Berlim Ocupada – 1945 – 1948 (Editora Globo), um daqueles livros indispensáveis para quem procura saber como viviam as pessoas naqueles dias tumultuados.

“Foi por um momento assim que esperamos doze anos? Para que brigássemos por um fígado de boi? E para que pegássemos coisas das quais não precisamos, levássemos aquilo que jamais desejamos?”, raciocina, antes de voltar para seu porão, deitar-se, cobrir a cabeça com um pano e mergulhar em um sono profundo – até despertar assustada e tentar se desvencilhar de um soldado bêbado que tentava estuprá-la.

Tempos difíceis para pessoas submetidas durante anos à liderança de um paranóico e depois castigadas pelo desprezo dos vencedores. Ninguém era diferente aos olhos dos soldados – todos, na visão deles, tinham alguma culpa pelos desastres e crimes praticados pelo nazismo. Não escapavam disso nem um grupo como o da autora do diário (o Onkel Emil), que durante a guerra participou de atividades de resistência, arriscou a vida ao ajudar perseguidos pelo regime, especialmente judeus, jamais aceitou participar das ações do Partido Nazista. Foi um grupo tão ativo na ajuda que, quando Ruth morreu, seu obituário no Israel Nachrichten dizia o seguinte: “Ela é um daqueles cidadãos germânicos que salvou a reputação de seu povo durante a fase mais negra. Que sua memória seja reverenciada”.

O diário de Ruth começa no dia 20 de abril de 1945, poucos dias antes da rendição total da Alemanha, e termina a 29 de dezembro de 1948, quando ela deixou a Berlim ocupada pelos soviéticos e tomou o rumo de Munique. Nestes quase quatro anos, vivendo boa parte deles em escombros, saindo em caçadas noturnas em busca de comida, água e carvão para espantar o frio, tentando evitar os bombardeios dos aliados, os fanáticos nazistas que executavam sumariamente quem defendia a rendição e, mais tarde, as hordas de estupradores que caçavam as mulheres alemães, Ruth mostra com detalhes chocantes a luta pela sobrevivência em uma cidade devastada.

“Oscilamos entre a esperança e o desespero (…) quando não se é o cão que briga pelo osso, mas o osso por que brigam os cães”, escreve Ruth em um dos tantos momentos de depressão e desespero. O mérito do livro é nos dar a visão dos vencidos. A história normalmente é escrita pelos vencedores, mas como as pessoas dominadas conseguiam viver em meio a bombardeios e miséria?

Foi a busca à resposta a esta pergunta que fez o norte-americano John Hersey publicar o memorável Hiroshima, livro (inicialmente reportagem que ocupou toda uma edição da New Yorker) que deu voz às vítimas das bombas atômicas lançadas sobre Hiroshima eNagasaki. É o que espero que alguém um dia faça sobre Sirte, a cidade líbia devastada  pelos bombardeios das grandes nações da Otan – sem qualquer reação de revolta e condenação do resto do mundo – apenas porque lá viviam partidários de Kadafi (se você quiser ter uma boa ideia de como ela ficou clique aqui). Ruth fez isso: ao falar no seu próprio dia a dia e no dos amigos, mostrou o drama de uma população humilhada e dominada, acima de tudo desprezada pelas tropas invasoras que não concediam qualquer direito aos vencidos. Para os aliados, independentemente de nacionalidade, todos os alemães eram culpados. Ninguém tinha direito a nada. Nem a uma bicicleta, nem a objetos mais valiosos e, se fosse mulher, nem ao direito de resistir aos estupros em série. Ruth fala de meninas de 18 anos que foram violentadas por 60 soldados em sequência – muitas delas convencidas pelos próprios pais a buscar o recurso do suicídio depois disso.

Livros como o Diário de Berlim Ocupada deveriam ser lidos por todos, discutido em reuniões familiares e entre amigos, usado em salas de aula para debates com os alunos. É um caminho curto para se entender o nível de insanidade que por vezes pode dominar a humanidade. “É a volta do homem primitivo”, costumava falar Frank, um dos amigos do grupo de Ruth, ao tentar respostas para ações e reações, agressões e vingança, derrotas e vitórias. Um homem primitivo cada vez mais armado, violento e insensível – cego, surdo e mudo. Estupidamente irracional.

Sobre mariomarcos

Jornalista, natural de criciúma, fã incondicional de filmes, bons livros e esportes
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14 respostas para Diário de Berlim Ocupada: uma viagem à insanidade da guerra

  1. Duque disse:

    Histórias como essa se sucedem com a humanidade e a humanidade em sua vasta sabedoria as repete sob o pretexto cego e irascível de defesa dos seus ou de sua etnia.

    E o pior é que ainda acontecerão, sob as bençãos ou omissão de quem poderia evitar, controlar ou mesmo mediar conflitos.

    Veremos muitas coisas que haverão de nos envergonhar como seres, ditos, racionais.

    • marianomonkey disse:

      Isso sem falar que os soviéticos, comunistas tão elogiados e admirados hoje em dia, liderados por Stálin, mataram alguns milhões de seres humanos em campos de concentração ou fora deles, muitos de inanição, famílias inteiras, mulheres e crianças, judeus inclusive, a mais que os nazistas, portanto, considerando junto o massacre de Mao-Tsé-Tung com a sua Revolução Cultural e de outros ditadores menores comunistas e socialistas, entre os quais o ex-capitalista Fidel e seu fiel escudeiro Che, estes mesmos da foice e martelo da foto, se tornaram imbatíveis, até hoje, em genocídios e extermínios, deixando os próprios nazistas e fascistas.
      Claro, sempre com o apoio e a colaboração democrática dos seus próprios compatriotas, tanto os revolucionários e partidários, quanto os covardes que se omitiram, nestes países…
      Mas estes regimes socalistas e comunistas genocidas não são muito lembrados como genocidas e, em muitos países, repito, como o Brasil, são admirados por muitos, inclusive nossos atuais governantes.
      E, pior, muitos que integram o atual governo, lutaram contra os militares para implantar regime semelhante aqui…mas são os bonzinhos de hoje, conforme a “comissão da veradade”. Verdade que aliás já está construída, pelo visto…
      às vezes fico pensando se a ditadura militar brasileira não foi um mal necessário para nos livrar de uma coisa pior…
      Mas, como dizem, só tem admiradores dos comunistas, hoje em dia, em países como o Brasil, (inclusive o ilustre blogueiro, embora não admita e tergiverse, espalhando uma falácia de que, hoje em dia, não existe mais esquerda e direita no mundo) que nunca teve regime semelhante…Pergunte a um habitante de um país do leste europeu o que ele acha do comunismo.
      E o pior é que essa o marxismo-cultural, incutido há varios anos nas universidades do mundo interio, inclusive no EUA, camuflado nesta praga do pensamento “politicamente correto”, dominante no mundo atualmente.
      Não duvido que o próximo governo totalitário seja em esfera global. Os céus nos livre disso. Mas, pensando bem, Ele próprio falou, no Livro Sagrado, que isso iria acontecer, porisso todo o comunista ou socialista – enfim, marxista – é ateu, anticristão ou defende o “outro lado”, como Marx o fazia, aliás.

      • marianomonkey disse:

        Só acrescentando que a hegemonia do pensamento de esquerda, marxista, no Brasil não está só no meio universitário, mas na imprensa, entre os artistas e “formadores de opinião”, refletindo-se, obviamente, no campo político partidário.
        Me parece que estamos começando a era da “ditadura das minorias”.
        Na real, devia ter ouvido a Regina Duarte, anos atrás…agora, pelo visto é tarde. Mas, antes tarde do que nunca.

      • mariomarcos disse:

        De que imprensa estás falando? Não é da brasileira, certamente. Tem gente que ouve o Puggina e o Azevedo e leva a sério.

      • Adriano Colorado disse:

        e o que me espanta é que todo mundo sabe que a maioria dos campos de concentração que existiam sob domínio do reich continuaram FUNCIONANDO apos a guerra sob domínio dos CAMARADAS… mas isso os admiradores do comunismo ignoram ou escondem de baixo do tapete. baita hipocrisia isso sim!

        baita post Mariano!

      • mariomarcos disse:

        É duro. Os soviéticos foram os primeiros a chegar e a começar com o processo de desocupação dos campos. Eles usaram outros campos para os prisioneiros de guerra, que foram muitos. Quem tiver alguma dúvida recomendo que leia o excelente Um Escritor na Guerra, de Vassily Grossman. Está tudo lá.

      • mariomarcos disse:

        Eu nunca escrevi que não há mais esquerda e direita. O que critico é a tendência de certas pessoas de ver socialismo e comunismo em tudo. Aliás, este teu extenso comentário prova que estou certo. É um post sobre um livro da Segunda Guerra e fazes uma tese sobre comunismo, com direito a alguma agressões – que também são comuns neste tipo de resposta.

  2. cesãogremista disse:

    Mario, eu tenho assistido repetidas vezes os documentários “Redescobrindo a II Guerra e Filmes perdidos da II Guerra”. O horror é, simplesmente, indescritível! O filme “O Resgate do soldado Ryan”, eu só consegui assistir uma única vez. A cena dantesca que me marcou(nunca mais tive coragem de assistí-la), foi a do soldado alemão introduzindo o punhal no peito do soldado americano. Este, balbuciando e implorando, enquanto o alemão, suor pingando, pronunciando palavras ininteligíveis, vai enfiando a arma branca, implacavelmente, diante dos olhos aterrorizados do soldado americano!

    • Adriano Colorado disse:

      tb assisto esses documentários, viste o capitulo onde os japoneses civis escondidos nas ilhas tomadas pelos eua matavam toda a família e depois se suicidavam? muitos se atiravam de precipicios quando os soldados se aproximavam (tem um vídeo que mostra mulheres depois de terem atirado os filhos se atirando para a morte. e sabe por que eles tomavam essa atitude? por causa dos seus generais que diziam que se eles fossem capturados pelos americanos seriam devorados vivos e coisas do tipo. sinistro!

      por isso que eu sempre digo: não acredito na palavra dos homens.

  3. Adriano Colorado disse:

    sobre o filme e a cena que citaste é sobre aquela velha maxima numa guerra: mate pq senão vão te matar… não exite misericórdia numa guerra.
    aquele cara que meteu a faca no soldado americano que era judeu tinha sido feito prisioneiro pelo grupo num tiroteio onde o médico do grupo acabou morrendo, o alemão havia se rendido num ninho de metralhadoras e mandaram ele cavar as sepulturas e a sua tb, ele clamou por misericórdia e o lider mandou solta-lo levando a fúria seus subordinados inclusive aquele que mais tarde morreu com uma adaga cravada no peito… que lição podemos tirar desse enredo?
    o responsável por alcançar munição estava cagado de medo e imóvel,deixando seus companheiros na mão que foram mortos por causa disso, ai se te lembrares o alemão passa por ele numa escada e ele ali cagado, os dois se olham e o alemão vai embora… mais tarde esse mesmo alemão atira no tom e o cara vê , ali ele cria coragem, rende os caras e mata o alemão que já deveria estar morto a muito tempo… assim é uma guerra.

  4. ELTON disse:

    Os neonazistas – e há muitos deles, infelizmente -,
    devem estar se deliciando com as histórias, as cenas
    de filmes e inúmeros documentários sobre a II Guerra
    Mundial.

    • Adriano Colorado disse:

      não entendi sua colocação Elton, quer dizer então que esses documentários,filmes,livros na verdade só servem para os neonazistas se deliciarem? não devemos conhecer nossa história então? as pessoas que viveram esses horrores e que sobreviveram tem que se esconderem?
      o povo brasileiro é tão ignorante que SÓ enxerga uma visão holliwoodiana desse conflito.

  5. Nei disse:

    Haviam também os Triângulos Roxos, em sua resoluta neutralidade, mas aniquilados pelo Reich. Esses, raramente lembrados.

  6. Adriano Colorado disse:

    pois é, como pode um pias que ficou totalmente destruído e dividido ao meio ser a maravilha que é hoje?
    se compararmos com o brasil só me da vergonha de ser brasileiro.

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