Lixo Extraordinário dá rosto aos brasileiros invisíveis

Alguns anos atrás, um grupo de notáveis gaúchos, formado por personalidades, modelos, comunicadores, vestiu-se com o uniforme dos garis que trabalham para o Departamento Municipal de Limpeza Urbana e espalhou-se pelo centro de Porto Alegre. O objetivo era comprovar, na prática, que há uma parte da sociedade sempre invisível, vivendo à margem de tudo. As pessoas passam ao lado e são incapazes de olhar firme nos olhos daquele varredor (ou do porteiro, escolha a função que você quiser). Entre os escolhidos estava a ex-miss Daisy Nunes, um rosto conhecido dos gaúchos. No fim do dia, nem ela, nem seus parceiros de aventura tinham sido percebidos. Vestidos com os uniformes de garis, todos continuaram invisíveis – ninguém se preocupou em prestar atenção no que faziam.

Vik Muniz, um dos artistas plásticos brasileiros mais conhecidos e valorizados no Exterior, sabia disso ao deixar o conforto de sua vida nos Estados Unidos e se aventurar pelo inacreditável Jardim Gramacho, em Duque de Caxias, o maior lixão aberto no mundo (foto). Preocupado com questões sociais, ele estava disposto a dar rosto e voz àquelas pessoas que vivem do que a sociedade descarta, a mesma que ignora solenemente (e não perde um minuto de seu confortável sono por isso) como vivem os integrantes das classes da parte mais baixa do estrato social. Fazem parte da população invisível.

Vik mergulhou tanto na vida daquela gente que seu trabalho resultou em um forte candidato ao Oscar. Isso mesmo: a vida dos catadores deu origem ao excepcional documentário Lixo Extraordinário (veja trailer logo abaixo), que deveria ser programa obrigatório para todos os brasileiros. É uma lição espantosa de humanidade, coragem, honestidade, sacrifício e disposição de encarar e vencer todos os desafios, por mais assustadores que possam parecer.

O filme nasceu de um projeto do produtor britânico Angus Aynsley, que deu a tarefa à diretora Lucy Walter. Aqui no Brasil, a missão de acompanhar Vik coube à produtora O2 Filmes, de Fernando Meirelles, ao documentarista carioca João Jardim e à editora pernambucana Karen Harley. O trabalho deles e a disposição de Vik de entrar na intimidade dos catadores resultaram em um trabalho notável, de sensibilidade e de uma sempre presente crítica social. Não deixe de assistir.

É comovente ver Tião lembrar passagens do livro O Príncipe, de Maquiavel, que ele recolheu no lixo e leu em casa, a ponto de lembrar das lições e dos personagens, ou de trechos da obra de Nietzsche. Ou conhecer os planos de Zumbi de montar uma biblioteca com os livros recolhidos na área. Ver mulheres que entraram no lixão porque os maridos perderam o emprego ou ouvir outras falando com saudade dos filhos. Ou então, prestar atenção nas palavras de seu Valter, que, depois de 28 anos de trabalho no lixão, dá uma lição de consciência ecológica, falando do desperdício, da falta de cuidados e da pouca preocupação da pessoas com o ambiente. “Me mostram que é apenas uma latinha e eu digo que 99 não é cem”, diz. Ou seja: cada um deve fazer sua parte para não agravar os problemas. Seu Valter e seu discurso ensinam muito. Muitos deles viraram obras de arte (foto) e tiveram suas imagens expostas com sucesso em galerias daqui e do Exterior. A cena em que eles visitam o Museu de Arte Moderna é inesquecível.

A exemplo daqueles catadores, que separam 200 toneladas por dia de lixo para reaproveitamento pelas indústrias, Vik também nasceu em família pobre, lutou para ter uma vida digna e ganhou espaço em galerias de todo o mundo com obras feitas com materiais incomuns, como chocolate, açúcar e lixo. Ele filmou e fotografou os personagens e, a partir daí, montou suas peças. A de Tião estirado em uma banheira (foto) foi vendida em leilão em Londres e todo o dinheiro foi destinado ao Gramacho, que ganhou escola, biblioteca, apoio social. É de Tião, por sinal, uma declaração cheia de orgulho feita no Programa do Jô. Esta:
– Permita-me uma correção. Nós somos recicladores, trabalhamos com material reciclável. Lixo é tudo aquilo que não se aproveita.

Acima de tudo, o filme escancara o egoísmo de parte da sociedade, a mesma que nem sempre entende a importância de programas como o Bolsa Família, cotas nas universidades ou bolsas para estudantes, que dão suporte e esperança para quem nunca teve nada. Vik deu àquelas pessoas que lutam dia a dia pelo lixo que produzimos a solidariedade que anda em falta nestes complicados tempos de valores descartáveis. Lixo Extraordinário pode até não ganhar o Oscar (afinal, a Academia se escandalizou com o realismo do excepcional Cidade de Deus), mas é uma aula de humanidade – e uma obra que mostra nossos heróis invisíveis.

Assista ao trailer oficial de Lixo Extraordinário:

Sobre mariomarcos

Jornalista, natural de criciúma, fã incondicional de filmes, bons livros e esportes
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12 respostas para Lixo Extraordinário dá rosto aos brasileiros invisíveis

  1. Marcus disse:

    Esta experiência não é exatamente nova, mas é sempre válida.
    Ela demonstra que há uma necessidade de certificação externa para que o que está sendo visto, seja aceito. Há o caso do violinista famoso que toca no metrô (Joshua Bell) de Washington, com um violino Stradivarius, por horas e ninguém ao menos para para ve-lo… E vários outros tb documentados.
    Este filme e este tema (lixo) já deveriam estar na ordem do dia há muito tempo. Sabia que 60% do lixo comum poderia ser transformado em adubo orgânico de alta qualidade, mas é misturado, jogado fora e contaminado?
    Que cidades da grande Porto Alegre (como Viamão, onde moro) não coleta seletiva do lixo? Que o lixão de Viamão está quase lotado?
    Este parece ser um assunto meio “indigesto”. Então, fechamos os olhos e terceirizamos tudo, inclusive a nossa responsabilidade para com o ambiente que nos circunda…
    Parabéns por falar sobre isso.
    abs
    Marcus

  2. edjailmafarma disse:

    Em meio a tantos desafios que a humanidade tenta vencer é desgastante perceber que estamos sendo engolidos pela falta de preocupação com nossa população. É neste cenário de falta de organização destes governates que são escolhidos por critérios duvidosos que me vejo a mercê de pessoas discrentes com a sociedade

  3. Amilcar disse:

    O Brasil dá show no campo dos documentários. A lembrança óbvia relacionada ao tema do lixo é Jorge Furtado e seu “Ilha das Flores”. Mas há outros assuntos, como o “Socorro Nobre”, de Walter Salles, o “Janela da alma”, de João Jardim e Walter Carvalho, entre tantos documentários que tratam dos temas que priorizas em teus posts: humanidade, solidariedade, indignação com o que parece tão comum ou normal, como a miséria e o descaso com relação a ela, a concessão de oportunidades para a superação das desigualdades, que provoca tantas reações dos bem situados ou simplesmente embrutecidos pela ignorância, etc. Parabéns, mais uma vez, Marcos, por fazer do teu espaço um lugar de reflexão.

  4. bruxo disse:

    MM algumas frases soltas:
    – Tenho vários vídeos de George Harrison; num deles ele fala que convidou Eric Clapton para compor algo em comum. Clapton vai até a casa dele e chega sem a guitarra. Harrison estranhou; emprestou uma da sua coleção e logo Clapton produziu a sua sonoridade inconfundível. Harrison(diz no vídeo) ali entendeu algo óbvio, que a arte está no interior do artista e não no instrumento. Mesma guitarra, mesmas condições e é possível dizer: ali está Hendrix,Page, Clapton ou Pete Townshend. Pois bem! Assim é numa crônica: ela é do Veríssimo,do Arnaldo Jabor, etc… Esta é uma do Mário Marcos, pois ela não cessa quando terminamos de ler. É reflexiva, é provocadora; acima de tudo, sincera
    – Existe chance ainda para a Humanidade? Não sei. As minhas últimas “tecladas” foi no sentido de atacar o individualismo e defender o coletivo(ainda que num âmbito menor, o futebol), mas confesso, estou com o sentimento de estar perdendo esta guerra para o mundo do “ter” e não do “ser”
    – Este vídeo e toda a reflexão que ele provoca, mostra o quanto Jorge Furtado & cia estão à frente de seu tempo com o monumental “Ilha das Flores”
    – Para exemplificar este moedor de carne que quer transformar tudo em lucro, não importando valores ou pessoas, durante um jogo transmitido pela TVCom ouço o narrador convidar a massa para o maior festival de ROCK do sul do país, o Planeta Atlântida com as seguintes atrações: Ivete Sangalo, Jorge e Mateus, Exaltasamba e abertura de Neto Fagundes.Tudo bem!Não sou contra o festival, mas profanarem o Rock é demais. Pobres de Morrison, Keith Moon, John Bonham e Raul Seixas que entre outros, deram a vida a um estilo e atitude únicos
    – Por último, esta crônica seguirá os passos do “Senhoras de Bem”. Pode crer

    • Marcus disse:

      Caro Bruxo, pelo visto somos da mesma “generation”… 🙂
      Sobre Eric, basta dar um pedaço de pau e cordas que ele tira o som… do Clapton!
      Sobre a pergunta se há chance para a humanidade, talvez a pergunta deva ser dirigida ao espelho, pois o mundo que vês é o mundo que é criado por ti mesmo…
      Sobre o Mário, bem, só posso dizer que a ZH perdeu muito mais do que ele. Acompanho a sua sensibilidade geral desde muito e acho que estamos precisando desta sensibilidade no jornalismo. E ela é individual e não faz parte de nenhum editorial.
      Mario percebeu isso e está criando o seu próprio caminho. Ou seja, está dando o “exemplo pelas costas”, como diz um amigo…
      Abs
      Marcus

      • mariomarcos disse:

        O que seria de mim sem retornos como o teu, do Bruxo, do Amílcar, do Felipe e de tantos outros? Teria uma lista interminável. Tomei esta iniciativa, desde os tempos de Zero, de levar a interatividade ao extremo e de conversar com os leitores, às vezes concordando, em outras discordando, mas sempre mantendo este canal. Não me arrependo. Foi um grande acerto e uma imensa contribuição para meu trabalho. E fico orgulhoso que a decisão de usar um espaço de esportes para colocar questões sociais tenha sido bem entendida – também desde os tempos em que comecei isso na Zero. Obrigado a todos.

  5. Rafael disse:

    Dos concorrentes do Oscar eu vi e adorei Exit Through The Gift Shop (sobre arte de rua), mas pela tua descrição, acho que vou torcer para este aqui…

  6. bruxo disse:

    Ao Marcus:
    – Acho que sou um “poquito” mais velho, mas ainda dentro da mesma “generation”
    – Teus comentários invarialvelmente são consequentes e por enquanto, quase sempre coincidentes com os meus(acho que é um elogio)
    – Sobre a saída do MM da Zero e adjacências, os bons que lá sobraram estão ficando ruins, “impregnados” pelo olhar caótico das chefias intermediárias
    – Sobre meu ceticismo vou citar frase de um historiador estado-unidense, ganhador de um Pulitzer, Gordon S. Wood. Diz ele: “Senso trágico não significa ser pessimista, mas apenas compreender a vida com todas as suas limitações”
    Gracias.

  7. Preciso ver este filme. Agora realmente seria intessante que a Ilha das Flores fosse apresentado junto, em algum momento 🙂

  8. Guto Bender disse:

    Parabéns, MM. E, principalmente, parabéns pelo último parágrafo. É isso, mesmo. Sou um dos que tem lutado muito por essa idéia: é muito fácil criticar essas coisas quando nem se imagina o que é precisar delas.

    Ou é egoísmo, ou completa alienação…

  9. Marcus disse:

    Bom…
    Fui ver o filme sábado a noite.
    Simplesmente maravilhoso, emocionante, inteligente, instigante…
    Faltam palavras.
    Gracias pela dica, Mario.
    abs
    Marcus

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